Ao ter uma resposta em um mecanismo de busca, receber uma notícia em uma rede social, encontrar recomendações de vídeos em plataformas audiovisuais, interagir com sistemas de atendimento ao cliente ou até mesmo ter um pedido de empréstimo avaliado, em muitos casos nos deparamos com sistemas inteligentes. Este adjetivo está associado a uma tecnologia já estudada há décadas, mas que vem ganhando visibilidade e importância nos últimos anos: a inteligência artificial (IA).
Segundo especialistas ouvidos pela Agência Brasil, a IA estaria relacionada a dotar máquinas ou sistemas informatizados da capacidade de realizar atividades semelhantes às operadas por humanos. De acordo com o Plano Coordenado sobre IA da União Europeia, o conceito “se refere a sistemas que operam comportamento inteligente ao analisar o ambiente e tomando ação, com algum grau de autonomia, para atingir objetivos específicos”.
“O conceito está mudando, mas gosto de defini-lo como o estudo de como fazer computadores realizarem tarefas que atualmente os humanos fazem melhor. Ela resolve problemas delimitados”, caracteriza a professora titular do Departamento de Informática da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e consultora do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações (MCTI) para o tema, Rosa Vicari.
“A inteligência artificial é um processo de automatizar processos feitos por humanos, que passa por fazer um código para replicar o que alguém está fazendo sem modelo matemático ou usando modelo. Eu leio texto jurídico e está escrito horas-extras e tenho que marcar na planilha que isso foi pedido, uso IA e automatizo processo que era feito por alguém”, exemplifica o cientista de dados da empresa Semantix Alexandre Lopes.
Mais do que automatização, a condição de avaliar grandes montantes de informações de forma complexa permite também a otimização processos e tarefas, a previsão de comportamentos e a tomada de decisão. “A IA consegue tanto transformar dados quantitativos quanto imagens em informações para tomar decisões autônomas”, observa o especialista em política e indústria da Confederação Nacional da Indústria (CNI) Vinícius Fornari.
Mas a explicação do termo não é pacífica, uma vez que o próprio conceito de inteligência também é passível de abordagens diferentes. “Definir o que é comportamento inteligente é um problema, é um conceito que muda com o tempo. Algo que parece inteligente pode não parecer a partir do momento que um programa de computador faz aquilo. É um conceito intrinsecamente vago”, comenta o coordenador do Centro de Pesquisa em Inteligência Artificial da Universidade de São Paulo (USP) e professor titular da Escola Politécnica da instituição, Fábio Cozman.
A professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Jonice Oliveira explica ressalta que a despeito da capacidade de operação de tarefas complexas, os sistemas de inteligência artificial dependem de decisões humanas. Eles analisam dados históricos valorados pelos seus desenvolvedores. “Se eu crio sistema que categoriza preços de supermercado como caro ou barato, o ser humano tem de rotular esses valores enquanto tal. Maçã a R$ 5 é caro e banana a R$ 0,10 é barato”, exemplifica.
Se o campo não é novo, ele ganhou muita força nos últimos cinco anos. Na avaliação de especialistas em vendas em inteligência artificial da IBM Roberto Celestino, isso se deve ao fato do momento atual ter um poder computacional maior, a geração de muitos por um mundo de cada vez mais dispositivos conectados. “Temos capacidade técnica para poder construir sistemas, o que antes ficava só na comunidade científica e hoje está no meio corporativo. Temos volume de dados gigantesco e precisamos analisar isso para gerar esse valor”, comenta.
Dentro do campo existem tecnologias como o aprendizado de máquina (machine learning), na qual o sistema pode ser “treinado” na repetição de análise de dados para operar procedimentos mais complexos, como apreender o contexto de imagens ou de textos. Outro tipo de tecnologia mais sofisticada são as redes de aprendizado profundo (deep learning), que permitam tarefas ainda mais complexas, como traduções de um texto de um idioma para outro.
Evolução recente
Essa evolução recente é expressada no ganho de capacidade de diversas aplicações. Segundo o AI Index, principal relatório internacional sobre o tema elaborado pela Universidade de Stanford, desde 2012 o desenvolvimento da tecnologia acompanhava a dinâmica da Lei de Moore, segundo a qual uma tecnologia dobra a cada dois anos. A partir desse ano, a velocidade aumentou progressivamente, com a duplicação da capacidade de operação a cada 3,4 meses. Um dos marcos da evolução foi a superação de humanos em jogos. No caso do xadrez, isso ocorreu em 2004. No videogame Atari, em 2013 para os jogos Enduro e James Bond. Em 2017, a IA do Google venceu o chinês Ke Jie no jogo de tabuleiro mais complexo do mundo, o Go.
Segundo o AI Index, entre 2017 e 2018, o tempo para treinar um sistema de classificação de imagens (ImageNet) em uma infraestrutura na nuvem caiu de 3h para 88 segundos. No mesmo sistema, a taxa de erro caiu de 0.25 em 2011 para 0.02 em 2017. O sistema de geração de imagens Cifar-10 aumentou o índice de desempenho em três vezes entre 2017 e 2019, amplificando a fidelidade da reprodução de imagens produzidas artificialmente.
O Banco de Dados de Evolução do Entendimento de Linguagem (Glue, na sigla em inglês) avalia o desempenho de sistemas de IA na compreensão de textos. No início de 2019, os resultados do estado da arte ultrapassaram a compreensão humana, tendo alcançado uma nota de 88.5, mais de dez pontos acima de janeiro do ano anterior (76.9).
A Universidade de Stanford, nos Estados Unidos, possui um banco de resposta de questões elaboradas por trabalhadores a partir de artigos da plataforma Wikipedia, incluindo “pegadinhas”. Em um ano, as respostas processadas por sistemas de inteligência artificial foram da nota 62 para 90, alcançando o nível de desempenho humano.
Em suas previsões para a área de tecnologia em 2020, a consultoria internacional Deloitte destaca a transformação da IA dos softwares para os dispositivos. Enquanto programas, uma das limitações do uso de IA é a necessidade da conectividade para sua operação. Ao embarcar essa solução em hardwares, ela pode ter sua adoção multiplicada.
Um dos principais produtos são os assistentes virtuais e caixas de som inteligentes (como Amazon Alexa ou Google Nest). Mas segundo a Deloitte, a evolução virá na fabricação de chips (microprocessadores necessários ao funcionamento desses aparelhos), que poderão ganhar escala nos equipamentos eletrônicos. A estimativa da consultoria é que em 2020, 750 milhões de chips de IA serão vendidos, superando o obstáculo da necessidade de conexão a um servidor na nuvem.
“Esses chips estarão em um número crescente de dispositivos para consumidores, como smartphones, tablets, alto-falantes inteligentes e ‘vestíveis’ [como relógios e óculos]. Eles estarão também em mercados voltados a empresas, como robôs, câmeras, sensores e outros aparelhos de Internet das Coisas”, projeta a Deloitte em seu documento de previsões para 2020 na área de tecnologia.
Usos
A IA vem sendo considerada uma tecnologia “habilitadora”, ou “tecnologia de propósito geral”. Isso porque ao permitir tarefas gerais como monitoramento, análise, otimização de processos e tomada de decisões ela pode ser empregada nos mais diferentes setores. As empresas líderes do mundo, como IBM, Microsoft, Google e Amazon, fornecem soluções para setores mais diversos, de saúde à logística, passando por marketing, rotinas produtivas, contratação de pessoas e administração de serviços públicos.
O professor Fábio Cozman entende que a IA pode contribuir ao substituir tarefas repetitivas desempenhadas por humanos. Outra possibilidade é a maior capacidade de análise de grandes quantidades de informações. “Na medicina, os sistemas podem avaliar imagens médicas e determinar pontos de atenção que médico precisa avaliar com cuidado. Na indústria, você pode imaginar programas que tomem decisão sobre logística ou sobre formas de produzir dispositivo”, exemplifica.
As empresas de ponta são as de tecnologia e que fornecem aplicativos. É o caso de diversos aplicativos utilizados no cotidiano por milhões de cidadãos, seja para acessar informação ou para se movimentar na cidade. “A capacidade do aprendizado de máquina permite calcular rota em aplicativos de trânsito, usando gamas de dados de geolocalização sobre o trânsito naquela região para poder prover ao usuário a melhor rota, além de recomendar lojas de uma determinada região que estão oferecendo promoções”, comenta João Thiago Poço, da Microsoft.
A IA pode ser acoplada a dispositivos para torná-los “inteligentes”. É o caso de eletrodomésticos, como geladeiras e televisões. Assistentes virtuais, como Amazon Alexa e Google Nest, utilizam processamento inteligente não somente para auxiliar usuários, mas para coordenar os equipamentos conectados em uma residência e facilitar os comandos e operações dos moradores em relação a eles.
A sofisticação destes sistemas vem permitindo o avanço dos chamados carros autônomos. A Waymo, subsidiária da Google para produção desses veículos, disponibilizou no início de 2019 um serviço de transporte privado com esses veículos, somente disponível nos Estados Unidos ainda. Na maior feira de tecnologia do mundo (CES), realizada nos Estados Unidos em janeiro deste ano, as empresas Uber e Hyundai anunciaram a intenção de construir nos próximos anos um táxi voador autônomo.
Na área de educação, sistemas de IA são empregados para monitorar e buscar melhorar a aprendizagem de alunos. A máquina pode simular raciocínio do aluno e oferecer conteúdos e tarefas específicos. Se o estudante erra, o sistema aprende e identifica onde está o problema. “Nos países nórdicos [Noruega, Suécia], cada aluno para um mesmo conteúdo tem um livro de acordo com seu estilo de aprendizagem, se é visual, auditivo, definições formais, ou textos. E também de acordo com o grau que o aluno pode acompanhar e responder por aquele tópico”, relata a professora Rosa Vicari.
Mercado
Segundo a consultoria Tractica, o mercado de Inteligência Artificial saiu de US$ 10 bilhões e deve atingir US$ 126 bilhões em 2025. Os segmentos com maior potencial de receitas devem ser o de aprendizado de máquina e processamento de linguagem natural.
De acordo com o AI Index, o investimento em startups que lidam com IA saiu de US$ 1,3 bilhão em 2010 para US$ 40,4 bilhões em 2018. A taxa anual média de crescimento foi de 48%. O número de empresas financiadas saiu de um mil em 2014 para mais de três mil em 2018.
No recorte por temas, os carros autônomos receberam mais recursos (10%), seguidos por medicamentos, tratamento do câncer e terapias (6,1%), reconhecimento facial (6%), conteúdo em vídeo (4,5%) e detecção de fraudes em finanças (3,9%). Os segmentos com maior crescimento no aporte de recursos nos últimos cinco anos foram a robótica e automação, gestão de cadeias produtivas, automação industrial, semicondutores e reconhecimento facial.
O investimento não ocorre apenas por fundos ou entes financeiros voltados a essa finalidade (como Venture Capitals). Governos também vêm investindo pesadamente nessas tecnologias, seja para pesquisa, seja para soluções nas mais variadas áreas, especialmente em segurança e inteligência. Os gastos do governo dos Estados Unidos com contrato nesse setor saíram de US$ 250 milhões em 2015 para quase US$ 1 bilhão em 2019, a maioria concentrada no Departamento de Defesa.
Potencial
O diretor executivo do Alphabet [conglomerado controlador do Google, YouTube e Android, entre outros serviços tecnológicos líderes mundiais], Sundar Pichai, está entre os que ressaltam os grandes potenciais da tecnologia. “IA é uma das coisas mais profundas nas quais trabalhamos como humanidade, mais do que o fogo ou a eletricidade. IA nos permite fazer algumas coisas que os humanos fazem com vieses”, afirmou, em palestra no Fórum Econômico Mundial deste ano, realizado em janeiro em Davos, Suíça.
Contudo, ele lembrou que essas soluções podem ter tanto impactos nobres quanto prejudiciais à sociedade. “Há aspectos positivos mas também consequências negativas. O reconhecimento facial, por exemplo, pode ser usada para encontrar pessoas desaparecidas, mas também para vigilância em massa”, ponderou. Essa preocupação está crescendo entre governos, sociedade civil e cidadãos, questionando os limites dessa tecnologia e o papel dos grandes atores privados responsável pela sua disseminação.