A juíza Inês Marchaek Zarpelon, da 1ª Vara Criminal da Comarca da Região Metropolitana de Curitiba, condenou um homem negro a 14 anos e dois meses de prisão tendo, como uma das alegações, sua raça. A Corregedoria-Geral da Justiça vai investigar a conduta da magistrada.
Após a repercussão do caso, Inês Zarpelon pediu desculpas (veja íntegra da nota abaixo).
A condenação ocorreu após o Ministério Público do Paraná (MP-PR) denunciar nove pessoas por integrarem uma organização criminosa que cometeu crimes de roubo e furto entre 2016 e 2018. A acusação citou diversas ações do grupo, e imagens e interceptações telefônicas foram anexadas no processo.
Apenas quatro integrantes da quadrilha foram condenados, entre eles Natan Vieira da Paz, vulgo “Neguinho”, 48, que teve sua raça citada por três vezes na decisão. Segundo o relato do policial que participou da investigação do caso, o grupo trabalhava de maneira organizada, em que cada um assumia uma função.
“Que Djalma, era um ‘senhorzinho’ com bigode; Eros usava óculos e parecia mais intelectual, tentando parecer um professor, e algumas mulheres que se vestiam bem; Fugindo desse padrão, estava Natan, que era magro e negro, e de fácil identificação, e por isso acredita que ele possuía o encargo de despistar”, conta o agente.
Em uma das citações feitas, a juíza Inês Zarpelon alega que “sobre sua conduta social nada se sabe.” No entanto afirma, por três vezes, que Natan é “seguramente integrante do grupo criminoso, em razão da sua raça, agia de forma extremamente discreta os delitos e o seu comportamento, juntamente com os demais, causavam o desassossego e a desesperança da população, pelo que deve ser valorada negativamente.”
“Neguinho” é apontado pelo MP-PR como alguém que auxiliava um outro criminoso, “especialmente para acobertá-lo na fuga”. Réu primário, Natan irá responder em regime fechado pelos crimes de furto, roubo e organização criminosa.
A advogada Thayse Pozzobon, que assumiu o caso de Natan após a sentença condenatória, diz que “associar a questão racial à participação em organização criminosa revela não apenas o olhar parcial de quem, pela escolha da carreira, tem por dever a imparcialidade, mas também o racismo ainda latente na sociedade brasileira.”
A advogada também expressa que “organização criminosa nada tem a ver com raça, pressupor que pertencer a certa etnia te levaria à associação ao crime demonstra que a magistrada não considera todos iguais, ofendendo a Constituição Federal”.
“Um julgamento que parte dessa ótica esta´ maculado. Fere na~o apenas meu cliente, como toda a sociedade brasileira. O Poder Judicia´rio tem o dever de na~o somente aplicar a lei, mas também, através de seus julgados, reduzir as desigualdades sociais e raciais. Ou seja, atenuar as injustiças, mas jamais produzi-las como fez a Magistrada ao associar a cor da pele ao tipo penal”, finaliza Thayse.
O advogado anterior de Natan, Iuri Machado, afirmou que a magistrada “sempre foi muito respeitosa na condução dos processos e no trato com as partes. Inclusive com todos deste processo.” Ele permanece defendendo outro indiciado.
O Tribunal de Justiça informou que a Corregedoria-Geral da Justiça “instaurou procedimento administrativo para apurar fatos noticiados pela imprensa relativos à sentença proferida pela Juíza Inês Marchalek Zarpelon”.
Juíza pede desculpas
A magistrada Inês Marchaek Zarpelon se defendeu, em nota, afirmando que “o racismo representa uma prática odiosa que causa prejuízo ao avanço civilizatório, econômico e social.” Além disso, disse que a linguagem poderia causar dubiedade, “quando extraída de um contexto”.
“Sinto-me profundamente entristecida se fiz chegar, de forma inadequada, uma mensagem à sociedade que não condiz com os valores que todos nós devemos diuturnamente defender”, disse ela.
Ainda na nota, Zarpelon explica que “em nenhum momento a cor foi utilizada – e nem poderia – como fator para concluir, como base da fundamentação da sentença, que o acusado pertence a uma organização criminosa. A avaliação é sempre feita com base em provas. A frase foi retirada, portanto, de um contexto maior, próprio de uma sentença extensa, com mais de cem páginas”.
Por fim, Inês pede “sinceras desculpas se de alguma forma, em razão da interpretação do trecho específico da sentença (pag. 117), ofendi a alguém.”
Leia a íntegra da nota da juíza:
“A respeito dos fatos noticiados pela imprensa envolvendo trechos de sentença criminal por mim proferida, informo que em nenhum momento houve o propósito de discriminar qualquer pessoa por conta de sua cor.
O racismo representa uma prática odiosa que causa prejuízo ao avanço civilizatório, econômico e social.
A linguagem, não raro, quando extraída de um contexto, pode causar dubiedades.
Sinto-me profundamente entristecida se fiz chegar, de forma inadequada, uma mensagem à sociedade que não condiz com os valores que todos nós devemos diuturnamente defender.
A frase que tem causado dubiedade quanto à existência de discriminação foi retirada de uma sentença proferida em processo de organização criminosa composta por pelo menos 09 (nove) pessoas que atuavam em praças públicas na cidade de Curitiba, praticando assaltos e furtos. Depois de investigação policial, parte da organização foi identificada e, após a instrução, todos foram condenados, independentemente de cor, em razão da prova existente nos autos.
Em nenhum momento a cor foi utilizada – e nem poderia – como fator para concluir, como base da fundamentação da sentença, que o acusado pertence a uma organização criminosa. A avaliação é sempre feita com base em provas.
A frase foi retirada, portanto, de um contexto maior, próprio de uma sentença extensa, com mais de cem páginas.
Reafirmo que a cor da pele de um ser humano jamais serviu ou servirá de argumento ou fundamento para a tomada de decisões judiciais.
O racismo é prática intolerável em qualquer civilização e não condiz com os valores que defendo.
Peço sinceras desculpas se de alguma forma, em razão da interpretação do trecho específico da sentença (pag. 117), ofendi a alguém.
INÊS MARCHALEK ZARPELON
Juíza de Direito”